Para o início deste texto, proponho um ponto de partida que
vez ou outra causa polêmicas: “não se nasce mulher, torna-se uma”. Essa célebre
e enfática constatação de Simone de Beauavoir não raramente é distorcida e mal
interpretada, gerando um quiproquó mesmo entre as feministas. No entanto, no
meu dia a dia enquanto mulher, eu apenas consigo ratificar essa afirmação da
filósofa francesa. Tornamo-nos mulheres: isso é ensinado, normatizado, vigiado
e punido. Sem folga, sem descanso e sem recreio.
“Fecha essas
pernas”; “parece um moleque desse jeito”; “tira a mão daí, menina não coloca a
mão aí”; “uma menina linda dessa falando palavrão”; “uma moça linda dessa que
não se dá ao respeito”; “olha o tamanho dessa saia”; “olha o tamanho desse
decote”; “mas um short desse tamanho pra usar em um lugar cheio de homem?”;
“tem que usar sutiã”; “mas cropped com a barriga desse tamanho?”; “a casa
bagunçada desse jeito, nem parece que tem mulher”.
Escrevi o
parágrafo anterior em 40 segundos. Cronometrados. Porque não precisei pensar.
Eu só digitei o que ouvi a vida inteira. E se você é mulher, provavelmente fez
uma leitura bem rápida dessas frases todas. O cotidiano nos ensinou isso. A
sociedade machista, estruturada no sistema patriarcal, bombardeia esses
ensinamentos pra gente de diversas formas. É assédio na rua, moralismo na
família, coerção e culpabilização na escola e no trabalho. O lugar da mulher
sempre foi o lugar decorativo, o lugar acessório, o lugar dos bastidores.
Ninguém escreveu isso num livro didático nem nos levou a uma escola específica
pra isso.
Mas aí
inventaram a Escola de Princesas. Talvez porque quando um sistema está tão bem
aparelhado, sólido e seguro, sequer haja problema em expô-lo. A Escola de
Princesas recebe meninas de quatro a 15 anos para ensiná-las regras de
etiqueta, arrumação da casa, automaquiagem e o comportamento adequado em um
relacionamento amoroso. O mote da escola: “o sonho de toda menina é tornar-se
uma princesa”.
Imagem da Escola de Princesas em Uberlândia (MG) |
De acordo com a antropóloga Michele
Escoura, o ideal de princesa na infância feminina dissemina um estereótipo de
feminilidade, reforçando desde a infância o roteiro a ser seguido na busca pela
felicidade da mulher. Dessa forma, quando a Escola de Princesas define
temáticas de “arrumação da casa” e “culinária” como atribuições femininas, ela
corrobora a alegação machista de que essas são tarefas que cabem exclusivamente
às mulheres.
A divisão sexista vem, novamente,
impor às mulheres o peso sectário da generalização. Essa frase pode parecer
contraditória, mas defendo que ela faça sentido: o patriarcado trabalha para
nos fazer mulheres cis gênero, heterossexuais, de preferência brancas, magras,
jovens, silenciosas, discretas, embelezadas e satisfeitas com essa condição.
Eles nos jogam ao lado B, nos determinam o espaço limitado do “segundo sexo”,
do “complemento do homem”, da “retirada da costela para caminhar ao lado” e
ainda impõem que sejamos todas iguais, dentro desse padrão.
A milionária herdeira Silvia
Abravanel, responsável pela franquia da Escola de Princesas em São Paulo,
afirma que o objetivo da instituição é “promover o resgate de valores morais”.
O aparelhamento patriarcal defende que já fomos longe demais, afinal, por mais
direitos que as mulheres conquistem, os homens e as mulheres são diferentes,
sim e ponto final! E nessa diferença, a lógica imposta pretende manter a mulher
voltada ao espaço doméstico, seguramente contida; enquanto o homem ocupa o
espaço público e exerce os papéis de dominação.
A Escola de Princesas promete
inovação e resgate de valores ao dizer que as mulheres precisam se guardar. Eu
as digo, com categoria, que estão no mínimo muito mal informadas. Passamos a
História inteira nos guardando e sendo guardadas. “Por trás de um grande homem
sempre existe uma grande mulher” e com essa afirmação eles querem nos fazer
crer que estão nos exaltando. Mas não: mais uma vez, estamos sendo guardadas. O
nosso lugar é o por trás. É o lugar do recato, da decoração, dos bastidores, do
acessório, do degrau.
O movimento necessário é o desaprincesamento,
porque para o posto decorativo do castelo, todas nós, mulheres ocidentais, já
fomos criadas. O movimento urgente é a desconstrução disso: existem diversas
formas de ser mulher. Essas formas são complexas, múltiplas e é bom que sejam
assim mesmo, porque só na pluralidade podemos pensar a igualdade. O homem,
desbravador e dominador, desde menino aprende as possibilidades de ganhar o
mundo. Carrinhos e liberdade; soldados e conquistas; videogames e estratégias,
Lego e lógicas. As mulheres, assujeitadas, aprendem a aceitar e esperar: o
príncipe que a resgate da torre, a fada madrinha que nos faça bela, as
panelinhas que contenham o resultado do trabalho e a boneca que enchemos de
ternura.
Mulher que ousa falar alto, que ousa
protagonizar suas próprias lutas, que ousa questionar seu lugar socialmente
construído de princesa é taxada de louca, radical, histérica e panfletária. O
que deixa de ter lugar, uma hora também fica sem nomenclatura. Descemos da torre
do castelo sem a ajuda de príncipe nenhum, nós por nós mesmas – como sempre
foi, afinal. Eles estão assustados. Aos poucos, vão descobrindo que princesa é
muito pouco. Nós somos guerreiras.
Sigamos juntas <3