Gordofobia: o que eu tenho a ver com isso?

[AVISO DE GATILHO: este texto contém palavras e relatos que podem servir de gatilho e lembrar-lhe de momentos ruins, relacionados ao tema gordofobia; caso não ache que vá conseguir ler sem se magoar, deixe no canto e volte quando se sentir melhor, tá bem? <3]

Chegou a hora de tocar na ferida mais uma vez: o feminismo não se importa igualmente com todas as mulheres. Eu sei que já falei sobre isso algumas vezes, a Rafa Amaro já falou sobre isso, mas, enquanto uma for prisioneira do discurso de outra, eu acho que a gente tem que continuar falando, sim. Porque discutir privilégios é essencial. Entender que, mesmo que mulheres, também podemos oprimir outras mulheres e reconhecer qual é o nosso papel diante disso é mais do que importante, é IMPRESCINDÍVEL, caso prezemos realmente por um feminismo que lute por todas e não somente algumas.

Vim falar de gordofobia, porque é um tema muito caro pra mim. Quando penso nesta palavra, lembro logo de um belo dia de sol em que, eu, sentada no meu canto na escola, no auge dos meus 12, 13 anos, ouvi de uma colega Regina-George-estilo-de-vida: "Olha, meninas, a baleia encalhou". É este cenário que me lembra, todos os dias, que meu lugar não é o mesmo que o dela. 

Sempre fui gorda. Gordinha não. Gordinha é mero eufemismo que as pessoas usaram, a minha vida inteira, na tentativa de soar menos cruel. Gordinha do rosto bonito, então, eu nem ouso comentar. Gorda é o termo. Fui gorda até meados dos 18 anos — hoje, não mais (e mesmo aqui é importante que eu reconheça isso). Explico. 


GORDA não é uma palavra ruim.

Até os meus 18 anos, eu não conseguia comprar roupa pra mim nas mesmas lojas que todas as minhas amigas. Eu precisava procurar lojas especializadas em "tamanhos maiores", "plus-size" ou seja lá qual o termo vocês queiram usar. Não ousava colocar os meus pés em lojas de departamento, muito menos naquelas mais caras que são tendência entre meninas de classe média ou alta, como Farm, Animale, etc. Eu sempre soube que aqueles não eram lugares para mim: "Aqui a gente não tem roupa para pessoas do seu tamanho" — o tom de voz mudava; as vendedoras me olhavam de cima abaixo enquanto diziam isso, com os olhos em chamas, quase como criando uma placa de "SAÍDA" inconscientemente (ou nem tanto)  me empurrando para fora. Comprar roupa, que sempre foi desenhado por Hollywood como o maior passa-tempo de uma garota, para mim era um pesadelo que quase sempre resultava em longas horas de choro. 

Outro motivo de constante dor de cabeça eram (e ainda são) idas aos médicos. A melhor lembrança que tenho para ilustrar isso foi quando resolvi ir à dermatologista tratar umas manchas que tinha no rosto, bem como minhas sardinhas. Sou sardenta e tenho a pele muito, muito branca, nasci assim, então invariavelmente preciso cuidar, o tempo inteiro, para evitar possíveis e prováveis doenças. A doutora não quis saber do que eu tinha a dizer, responder minhas dúvidas e me indicar um protetor solar. Tratou logo de me mandar pra balança e depois tecer inúmeros comentários sobre minha obesidade. Agora, vocês podem me dizer que obesidade e pele têm relação. Deve haver, sim. Mas qual era a necessidade real de passar mais de metade da consulta me "recomendando" comer melhor e me exercitar? Nunca fui de comer mal, aliás. No terceiro ano, minhas amigas magérrimas se alimentavam de arroz e batatas fritas enquanto eu comia salada, carne e um carboidrato por vez (perguntem a elas), muito porque eu sempre tive vergonha de comer arroz e batatas fritas de uma vez. Nunca me foi me dado o direito de comer como uma magra. Minhas taxas de sangue, pasmem vocês, nunca foram altas. Eu nunca tive absolutamente problema nenhum relacionado ao meu peso. Sempre fui de fazer muitos exercícios: vôlei, basquete, natação. Mas para aquela médica (e tantas outras e tantos outros com quem já tentei me consultar), o fundamental era falar sobre o meu peso.

Não entendo de medicina, mas entendo muito de gordofobia.

Nos 18, eu emagreci. Foram quase 20kg. Deus e eu sabemos o que eu fiz para conseguir chegar nisso, e minha saúde piorou muito. Mas eu emagreci 20kg. As pessoas passaram a comentar "MAGRA!"nas minhas fotos como se isso fosse um elogio. Foi, por algum tempo. Depois eu percebi que de nada me servia um elogio que apenas me lembrava da escravidão à qual eu fui submetida a vida inteira — e ainda estou; as amarras continuam aqui, elas só mudaram de aparência. Até hoje, se me perguntam, eu prefiro fingir que não estou com fome, do que comer qualquer coisa em um encontro. Prefiro fingir que estou satisfeita, que quero só um copo de água. Até hoje, eu não consigo fazer uma refeição sem lembrar dos mil e um comentários que ouvi a vida inteira. Eu acordo com o estômago em chamas e a garganta machucada, às vezes, porque prefiro enfiar o dedo lá no fundo a deixar que alguns quilos me façam voltar ao que já fui. Até hoje, eu não consigo usar short jeans ou blusa sem manga. E por mais que eu tente dizer a mim mesma que a maior revolução é amar o próprio corpo, não cola. 

Minha mente me engana. Eu tento, todos os dias. Mas minha mente sussurra, por vezes grita: "A baleia encalhou", "Aqui a gente não tem roupa para pessoas do seu tamanho"; "A baleia encalhou", "Aqui a gente não tem roupa para pessoas do seu tamanho"; "A baleia encalhou", ""Aqui a gente não tem roupa para pessoas do seu tamanho".

E qual o propósito desse texto? O que vocês têm a ver com isso? 

Vocês têm a ver com o discurso que propagam. Eu tento acreditar que não é por mal, mas, se vamos mesmo lutar por uma sociedade sem padrões, antes precisamos entender algumas coisas. Tentarei listar uns pontos que considero importantes e algumas falas que vocês precisam excluir do vocabulário. Venham comigo, ó:

  • "Mas eu não posso me sentir gorda?": não; gorda não é um sentimento; uma pessoa gorda não "se sente" gorda, ela é lembrada, 24 horas por dia, o tempo inteiro, por absolutamente todo mundo; ela não tem a opção se "se sentir" magra e se livrar de todos os julgamentos que enfrenta constantemente;
  • "Eu também sofro, eu sou muito magra": este ponto é o mais problemático e talvez um dos que mais ofenda quem é gorda, porque haja falta de empatia; não estamos negando que os padrões estéticos afetam, de uma forma ou de outra, absolutamente todas as mulheres; contudo, ser magra pode te gerar alguns conflitos internos, fazer com que você seja chamada de magrela aqui ou acolá, mas você nunca vai ser olhada com nojo pelas pessoas; você consegue sentar no ônibus e passar na catraca tranquilamente; você nunca vai precisar usar PANOS como vestimenta por não encontrar roupa na sua numeração; você nunca vai ter toda uma sociedade apontando os dedos para opinar sobre sua "saúde", mesmo desconhecidos no meio da rua — o que não passa de uma desculpa fajuta para disfarçar o nojo que sentem do seu tamanho;
  • "Você está comendo muito, já pensou em fechar a boca?": este tipo de fala é tão, mas tão problemático, porque você não sabe se a pessoa do outro lado tem algum transtorno de ansiedade, não sabe se tem algum distúrbio alimentar (PASMEM: não é preciso estar magra para estar sofrendo com anorexia ou bulimia) ou se aquela é a única refeição do dia dela; na maior parte do tempo, você já pensou em fechar a boca e não dar pitaco em algo que não lhe diz respeito?
  • "Hoje em dia, só não emagrece quem não quer": ha-ha-ha; existem mil e um fatores que podem fazer com que uma pessoa engorde (já ouviu falar em remédios contra a depressão, por exemplo?) ou não consiga emagrecer; a fórmula exercícios + comer de forma saudável nem sempre funciona pra todo mundo, afinal, cada um tem um histórico familiar e de metabolismo diferente; é muito confortável para você, no seu pedestal magro, apontar o dedo na cara de quem não consegue emagrecer e chamar essa pessoa de preguiçosa; já lhe ocorreu que talvez nem todo mundo possa comer de forma saudável? já observou o preço da alimentação saudável nos supermercados? quanto você paga mensalmente numa academia? já parou para pensar que talvez, só talvez, nem todo mundo tenha a mesma disponibilidade de tempo e dinheiro? Além de gordofóbico, este é um discurso classista e capacitista; que bela porcaria de se dizer;
  • "Você tem um rosto tão lindo, se emagrecesse seria maravilhosa": é impossível dizer somente que sou bonita? Dói? E quem foi que disse que eu quero emagrecer, aliás? Não posso me achar maravilhosa enquanto gorda? Isso te ofende? Que ótimo.
  • "Adoro fazer gordice *foto de brigadeiro com a amiga* #projetoverão #vaigordinha": eu não consigo expressar em palavras o quão DECEPCIONANTE é ver este tipo de coisa, porque vem logo de mulheres, que deveriam ser conscientes do quão tóxico este discurso é; fazer "gordice" não existe, porque não são só gordas que gostam de comer porcaria, como eu já disse ali em cima, mas aparentemente só magras estão permitidas a fazerem isso; se intitular "gordinha" e dizer que vai comer um brigadeiro, enquanto magra, é super aceitável, todo mundo vai rir e comentar na sua foto que você é magra, linda, pode comer o que quiser (o mais cruel é que, na maioria das vezes, eu acho que é exatamente isso que você espera ouvir ou ler); uma menina gorda não pode fazer o mesmo; ninguém vai rir se ela fizer isso; vão julgar e dizer que ela deveria "se cuidar" mais; entende a babaquice de tudo isso?

Não é tão difícil tomar responsabilidade pelo próprio discurso. É honesto, bonito, e evita que você ofenda as pessoas. Reconhecer privilégios é o que torna a caminhada menos complicada, porque de inimizade em comum basta o patriarcado e o capitalismo.

Minha experiência pessoal pouco importa, eu sou só mais uma — e, ainda assim, sei que poderia ser muito, muito pior; já imaginou se eu fosse pobre e negra, além de gorda? Aliás, hoje, eu não digo mais que sou gorda. Não acho que seja — e dizer que sim seria irresponsável e injusto com as minhas amigas verdadeiramente gordas. Tem lugar pra mim por aí hoje, até em lojas de departamento eu encontro algumas coisas. Pra elas, nem sempre. A sociedade não está pronta para lidar com pessoas gordas. Não há lugar para pessoas gordas. Ninguém quer saber da sua saúde: o que importa é que você é gorda. 

Eu só espero que haja lugar para as minhas amigas gordas neste feminismo, seja ele qual for. Sejamos aliadas em nossas diferenças ou não sejamos.

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