Desde o ocorrido no Rio de Janeiro (não acho que seja necessário entrar em detalhes), a cultura do estupro veio à tona. Não para nós: falamos disso há muito tempo em coletivos e em espaços sociais, acadêmicos, dentre outros. Mas agora é a hora do paÃs inteiro falar sobre isso ou, ao menos, sentir um pouquinho de incômodo sendo obrigado a ver todo mundo falar sobre isso. Acontece que a expressão "cultura do estupro" (surgida em meados da década de 70, não ontem, como alguns parecem pensar), ao contrário do que
Felicianos dizem por aÃ, existe em larga escala na realidade brasileira, e os dados não nos deixam mentir: segundo o IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), 78% dos brasileiros acham que o que acontece entre um casal, em casa, não interessa aos outros; 63% pensam que casos de violência dentro de casa devem ser discutidos somente entre os membros da famÃlia. Nada de novo sob o front, já que ainda existem juristas que acreditam no chamado "
débito conjugal", entendido como o dever mútuo de satisfação sexual adquirido com o instituto do matrimônio: acredite, por mais que essa ideia a mim soe medieval — o que, de fato, é —, já ouvi de professores e colegas que fazer sexo com a esposa sem seu total consentimento não é algo errado.
Ademais, ainda segundo o IPEA, 59% dos brasileiros concordam que existem mulheres para casar e mulheres para a cama; 58% acreditam que, se as mulheres soubessem como se comportar, haveria menos estupros. Parece-me claro que vivemos numa cultura do estupro, em que existe uma naturalização da violência sexual, sendo que esta se faz presente em todos os lugares, desde a escolinha de infância (com frases como: "Ele te maltrata porque gosta de você" e "Se ela está te ignorando é porque certamente quer te dar um beijo") até as novelas dos horários nobres. Vivemos numa cultura do estupro pois as mulheres (maiores vÃtimas, em estatÃstica, de violência sexual; contudo, não somente elas são as vÃtimas, visto que existem, sim, diversos casos de estupro masculino) são ensinadas a se comportar de forma a não serem estupradas, enquanto homens não são ensinados a NÃO estuprar — o que é certo e deveria ser o óbvio.
Contudo, continua não causando espanto, ao menos a mim, que existam Felicianos e, com eles, tantas Marias, Carlas, Eduardas, Marianas, etc., afirmando categoricamente que a cultura do estupro não existe e não passa de mimimi feminista. Sobre isso, Pierre Bourdieu, sociólogo francês, falou, brilhantemente, em 1998:
"O efeito da dominação simbólica (seja ela de etnia, de gênero, de cultura, de lÃngua etc.) se exerce não na lógica pura das consciências cognoscentes, mas através dos esquemas de percepção, de avaliação e de ação que são constitutivos dos habitus e que fundamentam, aquém das decisões da consciência e dos controles da vontade, uma relação de conhecimento profundamente obscura a ela mesma. Assim, a lógica paradoxal da dominação masculina e da submissão feminina, que se pode dizer ser, ao mesmo tempo e sem contradição, espontânea e extorquida, só pode ser compreendida se nos mantivermos atentos aos efeitos duradouros que a ordem social exerce sobre as mulheres (e os homens), ou seja, à s disposições espontaneamente harmonizadas com essa ordem que as impõe."
(A Dominação Masculina, edição de 2014, p. 59; grifos meus)
Pois bem. Com todas essas breves (ou nem tanto assim) ponderações em mente, passemos aos seriados que amamos. Há algum tempo, a ideia do estupro como algo que molda toda a construção das personagens tem aparecido em diversos seriados, entre eles House of Cards, Scandal, The Americans, Game of Thrones, Jessica Jones e Downtown Abbey. Enquanto alguns são partidários da corrente não-deverÃamos-ter-estupros-em-seriados, eu tenho uma visão um tanto quanto diversa. Estupros em seriados são necessários, pois existem estupros a cada minuto no mundo inteiro. Existem estupros do lado da minha casa. Existem estupros nos bastidores do mundo das celebridades. Existem estupros em paÃses cuja pobreza não pode ser mensurada em valores. Existem estupros. Ponto final. Ignorar tal realidade seria criar um mundo paralelo, o que pode ser bom, mas claramente nem sempre é a proposta dos seriados que listei.
Sim, de fato, alguns desses programas poderiam abordar a coisa de outra maneira. Pegue Game of Thrones, por exemplo: Sansa Stark foi forçada a se casar com Ramsay Bolton e teve sua virgindade (conceito que, creio eu, ainda discutimos muito pouco, mas isso é papo pra outro dia) brutalmente arrancada em uma cena muito explÃcita, que nos fez odiar ainda mais Ramsay e, ao mesmo tempo, ter uma visão mais humanizada de Theon Greyjoy, enquanto este chorava ao observar sua irmã semi-adotiva naquela condição. A cena poderia ter sido explorada de outra forma. A situação toda, aliás, poderia ter sido abordada de outra maneira. Ainda assim, devemos manter em mente que os seriados que amamos muito raramente são escritos ou dirigidos por mulheres. Assim sendo, são controlados majoritariamente por homens e, sim: em muitas das vezes, os estupros ocorrem justamente para humanizar algum homem ou trazer à tona a discussão de que nem todos são monstros, muitos são somente homens pais de alguém, irmãos de outrem, filhos, sobrinhos, tios, professores e tantos outros papéis sociais e afetivos, o que obviamente não justifica nada, mas torna a discussão mais densa.
Enquanto em Game of Thrones, vimos uma cena gráfica e talvez muito explÃcita, em Scandal e House of Cards, a cena não ocorre em tempo real, mas é trazida de volta em algum flashback. Particularmente nestes dois seriados, lidamos com mulheres fortes, com uma vida completamente construÃda após o episódio que, só então, após muito tempo, percebemos que deu o tom de todos os dias seguintes. Mellie Grant, em Scandal, é a esposa do presidente dos Estados Unidos, e — para não dar maiores spoilers —, vive a vida num jogo de poder que envolve a ela, seus filhos e todos a seu redor. Em um dos raros momentos de fraqueza, aprendemos a verdade sobre ela e seu passado assombroso. Este cenário, aliás, não diverge da realidade de Claire Underwood, em House of Cards, que só nos apresenta seu estupro quando encontra com outra vÃtima do mesmo estuprador e, inclusive, utiliza-se do episódio para fins polÃticos. Mellie e Claire são vÃtimas, mas nos mostram que não são somente isso. É possÃvel seguir em frente e tocar o barco, apesar dos tropeços e da enorme dor que carregam — e provavelmente sempre carregarão. É possÃvel viver apesar de. Importante frisar que Mellie Grant foi criada por Shonda Rhimes, o que torna visÃvel a mudança de perspectiva quando a história é escrita por uma mulher: as vÃtimas são sobreviventes e seguem em frente; não há foco no homem, há foco na persistência feminina e na capacidade de regeneração, o que humaniza ainda mais a mulher, dando-lhe espaço para sentir e viver nos maiores moldes da condição humana, não deixando-a eternamente na condição de vÃtima nem fazendo com que ela ignore completamente o episódio e siga como se nada tivesse acontecido — o que já vimos ocorrer, aliás, novamente em Game of Thrones, mas com Cersei Lannister.
Este cenário humanizador, que pinta a mulher traumatizada, mas que segue em frente, também é encontrado quando assistimos Jessica Jones. Aqui, novamente, a cena dos estupros (pois, sim, são vários) não são gráficas, nem por isso machucam menos. Não é necessário que vejamos Jessica sendo estuprada, uma vez que lidamos, em absolutamente todos os episódios, com as marcas que tais ocorridos geraram nela. Jessica é uma super-heroÃna humana demasiadamente humana, que passa a ficar com medo de tudo — e, ainda assim, é forçada por si mesma a esconder o medo que sente. Toda a construção da personagem se dá em cima do estupro e da violência psicológica, sim, mas lidamos com o que resta dela e como ela busca se reconstruir, apesar da enorme dificuldade evidente.
Não posso falar de todos os seriados que citei, já que ainda não assisti a todos eles, mas o objetivo do post é provocar a discussão. Válido ressaltar, porém, que o contexto social de Game of Thrones é diverso, e seria injusto fingir que não, uma vez que cenas gráficas de estupro não são novidade em contextos antigos — pegue, por exemplo, o filme A Outra, de 2008, em que Ana Bolena (vivida por Natalie Portman) é estuprada pelo rei Henrique VIII (Eric Bana) e a gente vê tudo acontecer em detalhes que podem ser assustadores. Aliás, ainda neste filme, o estupro aparece como uma punição e, se não formos espertos, podemos nos pegar culpabilizando Ana Bolena e dando razão ao rei. Porque esse é, justamente, um dos efeitos colaterais da cultura do estupro: estamos, todos, tão submersos nela, que por vezes nós mesmos, que nos colocamos em pedestais desconstruÃdos, podemos nos ver na posição opressora, culpabilizadora, ignorando completamente a posição da vÃtima.
Em se tratando de cultura, por todos os lados vemos exemplos. Em todas as partes encontramos vÃtimas e agressores. Portanto, meu objetivo aqui é tão somente provocar uma discussão. Talvez seja hora de prestarmos mais atenção aos seriados que amamos, buscando observar de que maneira estes lidam com as vÃtimas e os agressores num episódio de estupro. A que serve tal estupro? A cena é válida ou poderia ser evitada? Este episódio tem alguma finalidade na construção dos personagens ou busca tão somente o aumento da audiência? Conhecemos estes personagens, a história por trás deles, ou são personagens sem rosto, sem enredo, cuja principal função é ser vÃtima ou agressor num estupro? Este episódio desconstrói a cultura do estupro ou coloca-a em jogo sem o mÃnimo de responsabilidade social?
Sem cultura, não há povo. E, sem povo, não há cultura. Somos os principais responsáveis por mudar a cultura. Passemos, pois, a ter um olhar crÃtico e a, cada vez mais, falar sobre as coisas que estão erradas por aÃ, por aqui, em Game of Thrones ou Scandal. Em todos os lugares.
PARA SABER MAIS SOBRE O TEMA:
- O silêncio que ecoa: a cultura do estupro no Brasil, post do Lugar de Mulher;
- Como silenciamos o estupro, reportagem bem completa da Superinteressante, da qual, inclusive, retirei os dados do IPEA mencionados no texto;
- Aqui está a carta comovente que a vÃtima de Stanford leu em voz alta para seu agressor, link com todos os avisos de gatilho ativados, por ser muito forte; ainda assim, é de uma leitura extremamente necessária;
- A soberania patriarcal: o sistema de justiça criminal no tratamento da violência sexual contra a mulher, artigo da professora Vera Regina Pereira de Andrade, que oferece ensinamentos importantÃssimos sobre como o sistema de justiça criminal não é o melhor meio de lidar com crimes de estupro;
Alguns links especificamente sobre o tema, que foram essenciais na escrita deste. Contudo, todos eles estão em inglês: