Em defesa dos contos de fadas #1: A Bela e a Fera

Há muito tempo tenho em mente a ideia de iniciar uma série de textos em defesa dos contos de fadas. Explico. Sim, eu sei. Contos de fadas têm muitas coisas problemáticas, como, por exemplo, o fato de que só há pouquíssimo tempo começaram a fazer filmes de princesas negras (que não são contos de fadas, mas aguentem comigo e sigam a lógica aqui) e eu sigo aguardando uma princesa gorda ou minimamente não-magra. Mas contos de fadas são muito importantes. A gente só precisa pegar a responsabilidade nas mãos e promover um giro de perspectiva.

A Bela e a Fera sempre foi meu conto de fadas, dentre os que envolvem princesas, preferido. E, não vou negar, o que me encantava quando era pequenininha era, sim, o príncipe e coisa e tal. Porque eu não nasci feminista. Eu não nasci desconstruída e completa na minha auto-crítica. Até hoje escorrego (e escorrego feio). Só que para além do príncipe, o que me encantava na história toda era o amor que proporcionou algo muito bonito, a transformação de uma fera horrível (e aqui, leia-se, horrível de tudo: vaidosa, arrogante, assustadora, má) em um ser humano capaz de compreender e repassar sentimentos puros, bonitos, gentis. 

Sim, eu sei: "ai, mas isso pode transmitir a ideia de que o amor suporta tudo". Vamos com calma, porque tem mais coisa por trás. A Bela, desde o início, é bem diferente de uma princesa que simplesmente assiste a vida passar pelos olhos. Bela é uma menina inteligente, gosta de ler. Passa horas na biblioteca e sente que não pertence àquela vila, quer sair dali, viver a vida em outro canto. Recusa o pedido de casamento do cara mais bonitão do pedaço, porque sabe que ele é primitivo, vez que ele é daqueles que diz que mulher não pode ler, pois começa a ter "ideias" (uma mulher que pensa: que ser perigoso e hostil). Bela vai até o castelo para encontrar o pai e se oferece para ficar no lugar dele, num ato de extrema coragem e empatia, já que este estava doente e muito velhinho. 

Bela, portanto, não é um ser frágil, apático, que é "capturado" pela Fera e segue a vida dessa forma. Pelo contrário, ela peita seu "algoz", desobedecendo normas e regras impostas sobre sua vida no castelo. Aliás, é justamente desobedecendo regras que ela consegue se aproximar da Fera e conquistar sua confiança. Colocar Bela num papel de vítima é desconhecer a história ou, num ato de má fé, dar continuidade ao patriarcado, aquele mesmo que estabelece que mulher não sabe tomar as rédeas da própria vida e está sentenciada a ser, sempre, uma vítima. Está na hora de reconhecer que, em maior ou menor escala, todas nós temos algo de heróico em nós. Todas nós somos heroínas, não princesas frágeis.

Quando eu tiver uma filha, é sobre isso que irei falar quando falar d'A Bela e a Fera: sobre uma menina pra lá de foda que, com suas peculiaridades, conseguiu vencer o que parecia horrível e, através do amor, realizar uma transformação em larga escala. Relacionamento abusivo a minha filha vai compreender mais tarde, não na primeira infância. Na primeira infância eu quero que ela seja capaz de perceber as mensagens positivas d'A Bela e a Fera. E se ela quiser ver A Bela e a Fera como um relacionamento abusivo mais pra frente, tudo bem. Meu ponto neste texto é que uma criança não deveria entender sobre relacionamento abusivo, e se os contos de fadas seguem, invariavelmente, querendo nós ou não, sendo grande fonte de inspiração e ensinamentos pra primeira infância das garotas, que tal a gente só pegar a responsabilidade pra nós, feministas adultas, e reverter a perspectiva? Falemos, pois, da heroína que há em Bela. Falemos, pois, de todas nós.


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