Todos os dias alguém
morre. Todos os dias uma pessoa mata outra pessoa. Isso é fato. Mas toda vez
que algum crime em particular toma uma proporção grande através da mídia e da
internet, eu fico extremamente incomodada com a forma com que todos lidam,
falam sobre e discutem o acontecimento.
Em primeiro lugar, as
pessoas são extremamente rápidas em se referirem ao agressor como “monstro”. “Não dá pra chamar de ser humano, é um
monstro!” “Só um monstro seria capaz de matar alguém/tantas pessoas”.
Há algum tempo atrás,
estive em um simpósio sobre psicologia criminal, na qual escutei um professor
dizer sobre o quão importante é não tratarmos humanos como monstros,
independente do que eles fizeram. Monstros não pensam. Aquele indivíduo pensa e
se não o tratarmos como ser humano, jamais conseguiremos entender de que forma
ele pensa - e, consequentemente, não
conseguiremos fazer algo a respeito.
Stella: "Ele não é um monstro. É só um homem." Jim: "Eu sou um homem. E eu espero que eu não seja nem um pouco como ele." Série: The Fall. |
A mídia ganha em cima
do sensacionalismo – e as pessoas na internet ganham os famosos “rt’s” e as
famosas “curtidas”, que funcionam como reforçadores imediatos que fazem com que
todos postem a primeira coisa que lhes vem à mente, sem realmente pensar a
respeito. Com isso, temos um fluxo imenso de informações, cada vez mais
absurdas, de forma a conseguir a maior quantidade de atenção. No caso de
crimes, é uma chuva constante de tweets e posts contendo a palavra “monstro”,
muitas vezes logo seguida de “psicopata”.
Não quero entrar em
méritos de diagnóstico desse último adjetivo. O ponto é: quando me refiro ao
outro como algo tão grotesco, tão absurdo, tão distante da realidade (monstros
não existem, psicopatas são vistos pela maior parte da população como Hannibal
Lecter), eu coloco o outro extremamente distante de mim (já falei sobre isso em
outro texto aqui no blog, no qual discuti um pouquinho sobre o sistema penal
junto com a Rafa). Isso exclui as variáveis, os fatores culturais e sociais,
exclui o contexto. Volto exclusivamente a fatores individuais que guiam um
comportamento, deixando de lado todo o resto, ou simplesmente coloco o
indivíduo como alguém totalmente fora dos padrões, logo sendo uma exceção.
A nossa cultura/meio social é um fator de influência muito importante sobre o nosso comportamento, não à toa nos referimos ao ser humano como “biopsicossocial” – ou seja, um misto de fatores psicológicos, sociais e biológicos, impossíveis de serem desassociados. Desde 2014 temos tido uma onda de ódio cada vez mais crescente. O machismo, a homofobia, o racismo, não são novidade alguma, mas os discursos têm voltado a ganhar força e a internet em muito tem auxiliado em tal feito (volto ao argumento anterior sobre a busca constante por aprovação e atenção). Vivemos em uma época na qual o ódio é exposto sem medo algum em um comentário aleatório no Facebook e ninguém reflete sobre as consequências. “É só a minha opinião” espelha bem a ideia que se tem de que qualquer coisa pode ser dita sem nenhuma forma de consequência (e aqui não me refiro à punição, e sim a consequência social, comportamental).
A nossa cultura/meio social é um fator de influência muito importante sobre o nosso comportamento, não à toa nos referimos ao ser humano como “biopsicossocial” – ou seja, um misto de fatores psicológicos, sociais e biológicos, impossíveis de serem desassociados. Desde 2014 temos tido uma onda de ódio cada vez mais crescente. O machismo, a homofobia, o racismo, não são novidade alguma, mas os discursos têm voltado a ganhar força e a internet em muito tem auxiliado em tal feito (volto ao argumento anterior sobre a busca constante por aprovação e atenção). Vivemos em uma época na qual o ódio é exposto sem medo algum em um comentário aleatório no Facebook e ninguém reflete sobre as consequências. “É só a minha opinião” espelha bem a ideia que se tem de que qualquer coisa pode ser dita sem nenhuma forma de consequência (e aqui não me refiro à punição, e sim a consequência social, comportamental).
Mas não é bem assim.
O homem que matou doze
pessoas na noite de ano novo deixou uma carta – todo mundo, com certeza, já
sabe disso. Não pretendo dissecar a carta, não pretendo me aprofundar nos
detalhes e o mais importante: não estou defendendo a atitude do indivíduo. O
que me interessa aqui é levantar uma reflexão individual e social; é que
sejamos capazes de pensar sobre a importância daquilo que é dito, reproduzido,
da força que os discursos possuem e o que estamos plantando atualmente.
Segue alguns trechos e
aspectos da carta:
-
“Vou ter representantes dos Direitos Humanos puxando meu saco”,
caso ele fosse preso.
- Ao se referir ao
movimento feminista: “um sistema
feminista e umas loucas”.
- Se refere
constantemente à ex-mulher e outras mulheres da família da mesma como “vadias”.
-
“Não sou machista e não tenho raiva das mulheres (essas de boa índole, eu amo
de coração), tenho raiva das vadias que se proliferam e muito a cada dia se
beneficiando da lei vadia da penha!”.
-
“Família de policial morto não recebe tantos benefícios como a família de
presos. Cadê os ordinários dos direitos humanos? Estão sendo presos por ajudar
bandidos, né? Paizeco de bosta.”
Vou parar por aqui,
porque é suficiente pra entender toda a essência da carta.
Os trechos parecem
familiares? Parecem os comentários que vemos nas notícias do Facebook todos os
dias? Parecem um discurso que você provavelmente ouviu esse fim de semana
mesmo, na mesa de família, sobre feminismo? Ou sobre Direitos Humanos?
Com certeza sim.
Esses discursos são
compartilhados e reproduzidos todos os dias, ao nosso lado. Reparem em falas
como “mulheres de boa índole” ou, como em um outro trecho da carta, “homens
trabalhadores e de bem”. Nossos próprios políticos vendem esses discursos,
dividem nossa sociedade em quem é digno de ser bom e quem não é.
Mas quem é que julga?
Quem define quem está de qual lado? E quem é que compra esses discursos?
Eu defendo que,
enquanto sociedade, constantemente criamos e incentivamos comportamentos que
depois buscamos punir. Não sei o que esse homem fez antes, só sei que matou
doze pessoas e usou discursos cotidianos como justificativa. Posso apostar que,
antes disso, ele fazia parte da lista de comentários dos portais de notícias.
Nossas crenças importam, o que dizemos importa, o que compramos como verdade
importa sim. Porque doze pessoas estão mortas, punição alguma traz alguém de
volta e nós precisamos SIM pensar a respeito do que está fomentando tanto ódio
que tende, cada dia mais, a sair da internet e das rodas de amigos e aparecer
na mídia, em forma de comportamentos agressivos, dos quais não se pode mais
voltar atrás.
Indicações:
- Para quem tiver interesse, o último episódio de Black Mirror (3x06) traz uma discussão incrível sobre o ódio disparado na internet e a falta de reflexão a respeito.
- Albert Bandura apresenta uma teoria maravilhosa na psicologia social cognitiva, chamada “Desengajamento Moral”. Uma revisão bibliográfica interessante: Azzi, R. G. (2011). Desengajamento Moral na Perspectiva da Teoria Social Cognitiva. Psicologia, Ciência e Profissão, 31(2), 208-219.
- Philip Zimbardo fez uma palestra incrível pro Ted. É fácil achar no YouTube com o nome “Como pessoas comuns se tornam monstros... ou heróis”.
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