Domingo passado, fui ao cinema ver "Nise — O Coração da Loucura" (dirigido por Roberto Berliner), já ciente de que estava prestes a ver um filme e conhecer um pouco sobre uma mulher que me colocaria para pensar bastante. Baseado na experiência da psiquiatra Nise da Silveira (vivida por Glória Pires de forma excepcional), o filme retrata, basicamente, como o afeto e a atenção são meios muito mais eficazes para tratar dos "excluídos" do que qualquer tipo de violência, seja ela física, simbólica ou verbal.
Desde que entrei na faculdade de Direito, desenvolvi enorme interesse sobre o tema Direitos Humanos e a cultura da não-violência como resposta ao caos social. No segundo período, estagiando em uma Vara Criminal de Vitória durante o dia e tendo aulas profundas de Sociologia e Filosofia pela noite, eu entendi que havia entrado num ramo que não mais me proporcionaria noites tranquilas de sono ou um humor constantemente alegre. Lidar com Direitos Humanos e cárcere não é fácil: a gente precisa desenvolver um escudo e uma armadura, mas, ao mesmo tempo, cuidando para que o coração permaneça frágil, acessível. Ainda assim, parece um chamado. Militar pela dignidade humana, por mais difícil que seja, nunca será em vão.
Nise da Silveira foi um exemplo disso. Revolucionária na psiquiatria nacional, não acreditava na violência como solução e, lutando num campo majoritariamente composto por homens, encarregada da renegada Terapia Ocupacional de um hospital psiquiátrico, introduz a arte àqueles que ela chama de "clientes" — e não mais "pacientes" — como forma de expressão da mente, por vezes confusa. Nise não acredita na violência, acredita na subjetividade: deixa que seus clientes façam o que quiserem; deixa que suas mentes se manifestem livremente; deixa que os ditos "loucos" convivam com a natureza, com os animais, como seres humanos agora dignos de contato e afeto. Mas, para além disso, a trajetória da Dra. Nise nos faz questionar quem
é o louco e o são; quem é o desejável e o indesejável; por quem vale lutar e
quem a sociedade prefere isolar — tirar de vista, isentar-se de responsabilidade: pois aquilo que eu não vejo, não me afeta, com aquilo que está fora do meu meio de convivência eu não sou obrigado a lidar.
"A sociedade tende a instalar uma clivagem entre o que considera normal e anormal. Assim estabelece uma clivagem muito profunda entre ela (a sociedade "sadia") e todos aqueles que, como os loucos, os delinquentes e as prostitutas, são desvios, são doenças, que se supõe nada têm a ver com a estrutura social. A sociedade se autodefende, não dos loucos, dos delinquentes e das prostitutas, mas de sua própria loucura, de sua própria delinquência, de sua própria prostituição, e dessa maneira aliena, desconhece e trata como se fossem alheias e não lhe correspondessem"
(Bleger, 2007).
Em outras palavras, os manicômios e as prisões representam tudo aquilo com o qual não queremos entrar em contato e preferimos manter longe de nós - nos protege, enquanto sociedade, não do perigo causado por aquele que excluímos, mas do que eles representam a nós: a nossa própria loucura, a nossa própria delinquência.
"Nós estamos pretendendo a recuperação de homens considerados farrapos para uma vida socialmente útil e talvez mais rica que a vida anterior que eles levavam".
(Nise da Silveira)
Dia 18 de maio é celebrado como o Dia de Luta Antimanicomial, movimento criado para pôr fim a todos os tipos de encarceramento e hospitalização dos chamados "loucos", entendendo, como a Dra. Nise, que os métodos de verdadeira tortura e isolamento dessas pessoas não são o caminho para o tratamento de nenhum tipo de doença mental. Os hospitais psiquiátricos, por "melhores" que sejam, por mais "humanizados", ainda assim falham em cuidar do ser humano: ao isolar o indivíduo, ao excluí-lo, ao tratar todos os sujeitos com uma mesma rotina, com mesmos métodos de cuidado, utilizando-nos de estigmas, destruímos sua subjetividade, o que é característica fundamental das instituições totais, como descritas por Erving Goffman.
Para além disso, a luta antimanicomial também serve para questionar a própria função da pena de prisão no sistema penal — afinal, se prisão solucionasse o problema da violência, de fato, deveríamos ter índices de criminalidade bem menores, tendo em vista que o Brasil de hoje é o quarto país em que mais se prendem pessoas no mundo todo. É essencial pensar para além da cadeia, do isolamento social, da violência. E Nise da Silveira, ela mesma uma presa política por possuir livros marxistas, em sua história, ensina-nos isso.
Para além disso, a luta antimanicomial também serve para questionar a própria função da pena de prisão no sistema penal — afinal, se prisão solucionasse o problema da violência, de fato, deveríamos ter índices de criminalidade bem menores, tendo em vista que o Brasil de hoje é o quarto país em que mais se prendem pessoas no mundo todo. É essencial pensar para além da cadeia, do isolamento social, da violência. E Nise da Silveira, ela mesma uma presa política por possuir livros marxistas, em sua história, ensina-nos isso.
Conheçamos Nise da Silveira. Conheçamos figuras femininas importantes de nossa história e saibamos que é possível ser mulher, ter voz, ter atitude e conseguir revolucionar qualquer área do saber que nos propusermos a conhecer. Que a história da Dra. Nise da Silveira nos sirva de ensinamento e inspiração. Mas, acima de tudo, que entendamos que poderíamos ser nós. Poderia ser nossa mãe, nossa irmã. Porque nada nos diferencia em nossa sede revolucionária enquanto mulheres.
(DICA: A cena final do trailer não vai sair da sua cabeça e vai te servir de inspiração pra vida).
PARA SABER MAIS SOBRE O TEMA:
- Entrevista escrita com a Dra. Nise da Silveira;
- Quem foi Nise da Silveira, a mulher que revolucionou o tratamento da loucura no Brasil — matéria do Huffpost Brasil;
- "A casa dos mortos" — documentário, no youtube, sobre a realidade dos chamados manicômios judiciários, para onde são levados criminosos considerados loucos e que não podem ser levados a prisões comuns;
- "Bicho de sete cabeças" — filme brasileiro com Rodrigo Santoro como protagonista, narra a história verídica de Neto, internado em um hospital psiquiátrico após seu pai descobrir um cigarro de maconha em seu bolso;
- "Holocausto Brasileiro: Vida, Genocídio e 60 Mil Mortes no Maior Hospício do Brasil" — livro jornalístico de Daniela Arbex;
- "Manicômios, prisões e conventos" — livro de Erving Goffman;
- "Vigiar e Punir" — livro de Michel Foucault;
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