A quem serve o sistema penitenciário e o direito penal como um todo?
"As prisões representam perda de liberdade, literalmente e
simbolicamente. (...) Tire tudo o que faz deles, eles. Você vai ver, nós
estamos tentando entender como uma instituição afeta o comportamento
individual."
Filme: O Experimento de
Stanford (2015)
Antes de começar esse texto, quero fazer algumas observações
importantes: a primeira é que, muito do que vou escrever aqui, são opiniões
próprias. Claro, são opiniões embasadas em coisas que já li, que já ouvi, que
já estudei, porque não sou de espalhar opiniões sem fundamento. Em segundo
lugar, não acredito que seja possível escrever tudo o que penso e levantar
todos os pontos a respeito de um assunto tão complexo, mas vou falar sobre o
que mais me deixa aflita — há muito tempo (pretendo, assim, citar várias
referências/indicações que completem o que aqui for brevemente citado). Dito
isso, sigamos.
O sistema prisional é algo que me angustia há tempos. Quando
eu era menor, achava que a prisão era a solução de todos os problemas e me
sentia aliviada em pensar que as “pessoas más” estavam atrás das grades. Ainda
bem que a gente cresce, a gente estuda, a gente encontra pessoas aqui e ali e
essas pessoas deixam em nós muito do que elas são e do que elas sabem — e com
isso nos transformam, juntamente com as nossas opiniões e com a nossa visão de
mundo.
Até o meu segundo ano da faculdade, eu ainda via as coisas mais
ou menos dessa mesma maneira — mas acredito ser impossível cursar psicologia e
sair de lá do mesmo jeito que entrou (se for o seu caso, repense). No meu
terceiro semestre tive aula com uma professora incrível e esse foi o marco de
uma antiga Mariana para uma nova Mariana. Obviamente, eu não passei magicamente
a enxergar tudo de outra forma porque isso simplesmente não acontece, mas foi
como uma picadinha do questionamento. Lembro bem que foi nessa aula, com essa
professora, que comecei a questionar muitas e muitas coisas e depois disso, eu
não parei mais.
Como se pode imaginar, o sistema prisional foi uma dessas
coisas. Muito antes disso, eu já tinha um interesse imenso pela criminalidade — inclusive, entrei na faculdade de psicologia justamente por conta desse
interesse. Eu sempre quis entender o que leva uma pessoa a cometer um crime,
principalmente um crime contra a vida de alguém. Quando escutamos conversas
aleatórias por aí, parece tudo muito simples: “nós” somos “bons”, “eles” são “pessoas
más” e é isso. Nós nunca poderíamos estar ali, pois somos “pessoas de bem”.
“Tudo se resume à uma questão de caráter”, eles dizem.
Tal discurso é o favorito dos conservadores — principalmente
dos políticos. Acho que não preciso entrar em méritos de corrupção, certo? Também
não preciso falar sobre a implicação de se roubar dinheiro público — “não é
tirar a vida de alguém”, eles podem dizer. Não é? Tirar o dinheiro que deveria
estar na saúde, por exemplo, e implica diversas mortes por falta de
assistência, definitivamente, é tirar a vida de vários alguéns. Até aqui eu
conto com o fato de que vocês consigam ligar os pontos do raciocínio por conta própria.
Agora, quem já visitou um presídio? Ou melhor, de forma mais
realista: quem já assistiu qualquer documentário que seja sobre como funciona
um presídio? (referências 1, 2, 3 e 4)
Tal conhecimento veio no meu quarto semestre. Em uma matéria sobre ética, fiz
uma apresentação inteira a respeito do sistema prisional e as coisas com as quais
me deparei durante a pesquisa de conteúdo mudaram, definitivamente, alguma
coisa dentro de mim — foi aqui que descobri, de verdade, o que eram os “Direitos
Humanos”.
A situação de grande parte dos nossos presídios ultrapassa o
que a palavra “absurda” pode representar. Presos são tratados como animais,
como pessoas sem direitos, como verdadeiros lixos. Os presídios estão
superlotados. Segundo o relatório do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias
(Infopen), referentes a dezembro de 2014 (referência 5), a população carcerária brasileira é a quarta
maior do mundo e é composta, em sua grande maioria, por jovens, negros e com
baixa escolaridade. Mulheres, em presídios femininos, são obrigadas a usar
miolo de pão como absorvente interno (referência
6). O crime que mais leva os indivíduos à cadeia é, segundo o relatório, o
tráfico de drogas (28%), seguido de roubo (25%) e furto (13%).
Todas essas informações nos ajudam a levantar infinitos
questionamentos, podendo começar por: quem são as pessoas que estão dentro das
cadeias? Constantemente, juntamente com o conceito de que o mundo é dividido
entre os “bons” e os “maus”, também nos é transmitida a ideia de que o mundo é
um só e é visto exatamente da mesma maneira por todos nós. As leis existem,
portanto devem ser cumpridas: todos sabem disso e todos devem respeitar. Mas o
mundo é, na verdade, uma infinidade de visões subjetivas. O único
questionamento que acredito ser necessário aqui é: você realmente espera que
uma pessoa pobre, a qual o Estado não se importa com, largada a própria
capacidade de sobrevivência, irá olhar para as leis da mesma forma que nós, que
não passamos fome, que temos o mínimo de respeito dentro da sociedade?
Realmente, uma pessoa marginalizada consegue imaginar que ela deve alguma coisa
a um Estado e a uma sociedade que nada fazem por ela?
Eu acredito que a resposta seja muito clara.
Antes que alguém consiga pensar, já adianto: existem
exceções, como em absolutamente tudo nessa vida. Nunca, absolutamente nunca,
algo que se refira ao ser humano será contemplado com uma porcentagem de “100%”.
Mas exceções, como obviamente a própria palavra diz, não são regras. E não é à
toa, não é por acaso, que a maioria da população carcerária é negra e de baixa
escolaridade.
Outra questão importantíssima diz respeito aos 28%
relacionados ao tráfico de drogas. Nós vivemos uma luta falida contra as drogas
desde que ela se iniciou e isso é extremamente claro. Já passou da hora de
revermos nossas políticas proibicionistas, de pensarmos em novas políticas de
drogas, pois a única coisa que essa guerra nos trouxe e segue nos trazendo é
exatamente aquilo que todas as guerras trazem: mortes e perdas de todas as
formas (referência 7). A guerra às drogas é — e já nasceu assim — falida. No Brasil, devemos pensar no problema do tráfico, que mata e retira direitos de milhares de pessoas por ano. Não podemos nos dar ao luxo de pensar as drogas na perspectiva do usuário. Devemos pensar no tráfico. E para acabar com o tráfico, devemos legalizar as drogas. É uma fórmula óbvia.
Acredito ser importante explicar aqui que o sistema
penitenciário é falido como um todo. Explico: não há impunidade, há punição
seletiva – prendemos, mas não prendemos todos, prendemos alguns (os que são,
claramente, maioria nas cadeias); não temos o menor intuito de ressocialização –
o que nós queremos é vingança. E esse ponto é extremamente relevante. O sistema de justiça criminal, como se mostra, é apenas mais uma ferramenta que serve puramente ao capitalismo, como mais uma das molas propulsoras: é preciso identificar um inimigo e excluir do convívio social aquele que não serve às demandas do sistema.
O que pretendemos com a prisão? Nós queremos punir porque
nós queremos nos vingar. Somos seres humanos e seres humanos são compostos por
emoções. Sentimos raiva, ficamos indignados, com nojo, com medo. É muito
difícil pedir para que as pessoas sejam racionais quando falamos sobre crimes. “E se fosse você? Sua família? Queria
ver! Tá com pena leva pra casa”, eles dizem. Todas essas situações
citadas remetem exatamente ao excesso de emoções, a momentos que tiram a nossa
racionalidade. Respondo: se fosse comigo, se eu fosse estuprada, por exemplo, eu
com certeza iria querer a morte do estuprador.
Mas quem faz as leis, quem as aplica, quem desenvolve
políticas públicas, o Estado, todas as essas pessoas elas não podem agir de
acordo com suas emoções. Não podemos pensar em atitudes e medidas eficazes se
pensarmos através de nossas emoções.
A prisão não é eficaz. Ponto final. Se fosse, nosso país
teria um índice extremamente baixo de criminalidade, visto que somos o país com
a quarta maior população carcerária do mundo. Quando apontamos para o presídio
como solução, quando exigimos maiores penas para uma pessoa, nós não estamos
pensando racionalmente nas consequências e no “depois”. E quando o sujeito
voltar para a sociedade? Porque a pena dele vai acabar, em algum momento. E ele
voltará para uma sociedade que o excluí, de novo, de novo, de novo. Voltará
para essa sociedade depois de ter passado anos dentro de um local que destruiu
sua subjetividade e que o maltratou infinitas vezes, de todas as formas
possíveis (vejam os documentários, vejam o filme que eu citei, porque
infelizmente se eu for descrever cada um deles aqui esse texto não terá fim
jamais).
É urgente a destruição dessa lógica punitivista. É urgente
olharmos para esse sistema completamente falho com a criticidade que ele
merece. Sempre me questionam: o que você sugere, então? A longo prazo e a
melhor solução possível: educação de base de qualidade, juntamente com redistribuição de renda. Porém, sabemos que esse
é, ainda, infelizmente, um sonho distante – principalmente em termos de “Escola
Sem Partido”. Precisamos olhar para nossas políticas públicas, para as nossas
políticas sociais.
Nós não somos pessoas de bem; somos pessoas. Eles não pessoas
más; são pessoas. Não sou isenta de erros – meus, da polícia ou da justiça (referência 8 e 9). Você também não é.
Precisamos nos tirar dos pedestais que nos colocam como incapazes de estar no
lugar do outro, um dia. E precisamos trabalhar aquilo que é conhecido como “empatia”,
que permite que eu me coloque no lugar do outro, mesmo que eu não tenha estado,
necessariamente, por lá.
REFERÊNCIAS/INDICAÇÕES:
Citadas no texto:
- Documentário: O Prisioneiro Da Grade De Ferro https://youtu.be/2Oap5lUSp6w
- Sistema penitenciário brasileiro (trechos de matéria da Record) https://www.youtube.com/watch?v=vbD3OaOrcp8
- Documentário: A Casa dos Mortos - Manicomios Judiciários https://www.youtube.com/watch?v=noZXWFxdtNI
- Filme: O Experimento de Stanford (2015)
- http://www.justica.gov.br/noticias/populacao-carceraria-brasileira-chega-a-mais-de-622-mil-detentos
- Livro: Presos que Menstruam - Nana Queiroz
- Documentário: Quebrando o Tabu (disponível no Netflix)
- Documentário: Medo do 13 (disponível no Netflix)
- Documentário: Central Park Five (2012)
Outras:
- "Prisões, Manicômios e Conventos" – livro de Erving Goffmann
- Black Mirror: episódio 2x02 “White Bear”
- "Introdução crítica à criminologia brasileira" — livro de Vera Malaguti Batista
- "Vigiar e punir" — livro de Michel Foucault
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