Sobre Marina Joyce e boas intenções possivelmente tóxicas

Noite passada, a internet viveu uma histeria coletiva por conta da hashtag (que continua em primeiro lugar nos trends mundiais) #savemarinajoyce. Marina Joyce é uma youtuber britânica que, nos últimos meses, começou a apresentar comportamentos estranhos em seus vídeos. No mais recente deles, é possível observar a menina extremamente assustada, dedos que por vezes mostram onde ela deve se posicionar, machucados por seu corpo e, segundo alguns, um pedido de socorro ("help me") em forma de sussurro. Alguns dizem que Marina foi sequestrada e está sofrendo abusos por parte do namorado e que este tem drogado a menina constantemente. Os amigos de Marina afirmam que ela tem um problema com drogas e que inclusive já ofereceram ajuda, mas ela não aceitou. Há quem ache que a menina apresenta um quadro de esquizofrenia. 



A polícia foi chamada ao local e afirmou que a menina parecia estar bem, sem qualquer risco aparente. Na manhã de hoje, ela fez uma transmissão ao vivo, na qual pareceu perturbada, mas afirmou, por diversas vezes, que está bem. Houve quem respondesse: "Não, você não está bem", tendo a menina reafirmado que, sim, está bem — podemos, por um minuto, pensar no quão frustrante deve ser, independente do problema existente, ter completos desconhecidos questionando nossa sanidade e nosso bem estar? Podemos falar sobre as possíveis — e prováveis! — implicações psicológicas disso? Existem formas de ajudar alguém que está passando por algum problema. Essa, ao meu ver, não é a melhor delas.

Em resumo, é isso. Particularmente, não acho que a menina esteja bem. Creio que é possível que ela esteja mesmo com algum problema. Mas, no final do dia, isso não diz respeito a mim. E não é disso que vim falar. Na verdade, vim tocar numa ferida aberta nas veias do mundo conectado. Uma ferida bem grande e fortemente danosa: o confisco de conflitos extremamente particulares por uma massa de desconhecidos que julgam saber todos os detalhes de qualquer história a ponto de, sim, julgar e condenar qualquer boato que seja. 

Somos seres que se guiam pelas emoções, isso é fato. Em situações de medo ou tristeza, não sabemos agir racionalmente. Eu fiquei transtornada com a história toda, tive crise de pânico e dormi por um total de duas horas nesta noite. Vi muitas notícias sem qualquer embasamento: ela morreu; ela foi encontrada num rio; ela é refém do Estado Islâmico (!); ela está morta e os vídeos são antigos, etc. Vi muita gente acreditando nessas histórias. Vi gente pegando fotos aleatórias do namorado da menina, supostamente com machucados nas mãos, e afirmando cabalmente que ele é o responsável, que deve morrer e deixar a menina em paz. 

Sim, somos seres que se guiam pelas emoções. Mas precisamos conversar sobre os limites necessários em casos como esses. 

Eu não conheço o namorado de Marina Joyce. Eu não conheço Marina Joyce. Eu não sei o que se passa, só vi vídeos de uma menina que aparentemente não está em seu estado normal. Não cabe a mim dizer qualquer coisa, julgar qualquer pessoa e, principalmente: não cabe a mim afirmar nada sobre o caso. Isso fica por conta de Marina, seus amigos, seu namorado, seus familiares e, em casos extremos, aqueles que moram por perto. Só. 


Aliás, isso me lembra um outro caso que minhas companheiras feministas adoram citar: Mallu Magalhães e Marcelo Camelo. Não é raro entrar em coletivos feministas e dar de cara com mulheres afirmando, sem deixar qualquer espaço pra debate, que Marcelo é pedófilo e abusivo em seu relacionamento com Mallu. De fato, a diferença de idade é gritante. De fato, é nosso papel falar sobre diferenças de idade e possíveis consequências. Mas entre tratar no plano das ideias até julgar e condenar indivíduos sobre os quais não sabemos mais do que o que aparentemente interessa à mídia e afins existe uma enorme diferença, que reside na individualização de cada relacionamento. Estamos falando de vidas, de seres humanos. Mallu Magalhães sofre de depressão e já pediu, por diversas vezes, para que parem com a ideia de apontar o dedo para seu casamento. Ela prefere evitar acessar a internet do que ver certos comentários. Ainda assim, não basta. Para a era da informática, não importam subjetividades, não existe buraco que seja mais embaixo. Existem verdades universais para problemas individuais e fim de papo. Abusador tem mais é que morrer e nós não queremos sequer debater isso. 

Pautar decisões e opiniões em emoções não pode e não deve ser aceito como normal, nunca. Se assim fosse, logo teríamos a volta da pena de morte: "Imagina se fosse com você ou sua família!". Se fosse comigo ou minha família, eu adoraria que a pessoa morresse. Mas imagine o caos que seria instaurado caso o pensamento predominante fosse esse. 

Darei um exemplo para ilustrar o meu raciocínio: em 2014, uma mulher foi linchada até a morte no Guarujá por causa de um boato na internet, que dizia que ela era uma bruxa e sequestrava crianças para rituais. Um retrato falado de uma mulher, parecida com a moça em questão, circulou. Foi o suficiente pra população se revoltar e matar a moça da forma mais cruel possível, com ódio nos olhos e nas mãos. Depois, descobriu-se que o retrato falado atribuído a Fabiane nem sequer era da região do Guarujá, mas do Rio de Janeiro, bem longe dali. Fabiane deixou uma família que muito provavelmente jamais conseguirá voltar a viver em paz.

O que eu quero pedir, ao fim deste texto, é que busquemos ter mais calma ao lidar com vidas individuais na era da super informação. Não questiono as boas intenções por trás da histeria — eu acredito que as pessoas podem ser boas e queiram muito ajudar. Mas mesmo ajudar pode ser perigoso quando não se sabe do que se trata. 

Falando especificamente sobre relacionamentos abusivos, sim, eles existem e estão por todas as partes. Devemos falar sobre eles. Devemos discutir, conversar sobre. Mas cada relacionamento é um. A melhor forma de lidar com algo que pensamos ser abusivo é, caso sejamos próximos das pessoas em questão, sentar pra dialogar, oferecer ajuda, cara a cara. Pode nem ser o que aparenta. Pode não ser nada. E causar alarde sem embasamento pode, em determinados casos, ser o verdadeiro causador de um problema maior. 

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