"Outros jeitos de usar a boca": um convite da indiana Rupi Kaur
Eu não sou alguém com moral para
indicar coisa alguma com propriedade, mas desde que li “Outros jeitos de usar a
boca”, da Rupi Kaur, o meu primeiro sentimento foi: quero que todas as mulheres
do mundo possam ler esse livro. De todo o modo, fico feliz em ver que não
apenas eu percebi esse movimento: uma grande amiga colocou esse livro em minhas
mãos durante um passeio pela livraria; hoje abri o Twitter e encontrei posts de
uma mulher que admiro muito falando sobre como o livro transformou a vida dela,
deixando-a sem palavras e ao mesmo tempo com muito a dizer.
Por isso, decidi escrever aqui e
contar um pouco sobre o que li, o que compreendi e o que me motiva a recomendar
esse livro com tanta urgência e voracidade. Reforço que são impressões
pessoais, então é possível que vocês discordem de todas elas e tá tudo bem!
“Outros jeitos de usar a boca” é
o maior sucesso da jovem escritora indiana Rupi Kaur. Com apenas 24 anos, ela
decidiu compartilhar conosco seus poemas e ilustrações sobre quatro temas, que
dão nome às partes do livro: a dor, o amor, a ruptura e a cura. Os poemas são
curtos, em linguagem direta e as ilustrações encantam pelo traço solto, livre e
expressivo.
Em todos os conteúdos, tenho a
impressão de que Rupi diz exatamente o que precisa ser dito, nada a mais e nada
a menos que isso: tudo o que precisa ser dito. Inclusive, esse é o primeiro
ponto pelo qual recomendo o livro fortemente: ela teve coragem de contar a nós,
mulheres desconhecidas, muito do que passamos anos sem compartilhar com nossas
mães, irmãs e amigas. Os medos, os traumas, o sentimento de rejeição e de não
pertença que Rupi aborda – principalmente nas partes “a dor” e “a ruptura”
habitam o coração e a mente das mulheres de modo universal, pela condição
ontológica que partilhamos e muitas vezes não nos damos conta: somos o Outro,
tal qual caracterizou Beauvoir.
A transformação do sofrimento em
força, motor das nossas lutas feministas cotidianas, é crucial na poesia de
Rupi. A autora se apropria dos maus tratos e do preconceito étnico que sofreu e
os devolve em doses de consciência e renascimento de tirar o fôlego. Seus
poemas provocam exatamente o que eu mais valorizo na Arte: cutucam, cutucam e
cutucam...até fazer sangrar! Para daí, então, oferecer alguma catarse, redenção
ou constatação.
Na primeira parte do livro, o
sofrimento transbordante chega até nós com certa identificação, mesmo que não
seja uma plena identificação de relatos. Rupi fala sobre a relação difícil e
abusiva com o pai e o tio, incluindo histórias de violências físicas, a
consolidação do estupro e os frequentes atentados à sua autoestima, ao seu
valor como pessoa e como mulher. Nessa fase, a autora compartilha conosco o
sentimento de culpa milenar que pesa sobre a mulher: a portadora da mácula, das
curvas que levam ao pecado, do sentimentalismo que nos torna fracas e
inferiores. Dá pra sentir a autora estendendo sua mão compreensiva e dizendo, naquele
tom confidencial e reconfortante que as amigas usam conosco quando sentam na
nossa cama para um papo informal mas profundo: fica tranquila. Você achou que
era só com você, mas não é, não. É a maldade do mundo ferindo você. A culpa não
é sua.
Na segunda fase, Rupi partilha
suas impressões sobre o amor, com a plenitude da entrega. O amor em seus poemas
não se limita ao sentimento envolto em romantismo, mas na busca por segurança e
redenção nos braços que lhe parecem confiáveis, talvez – e provavelmente - pela primeira vez. A autora explica, com
beleza e precisão, a tranquilidade que toma conta de nós ao percebermos a
oportunidade de confiar em alguém, de dividir as aspirações mais profundas pelo
prazer de fazer bem ao outro. É como se fosse possível, enfim, respirar fundo e
suspirar com aconchego. Os versos sobre sexualidade ganham uma roupagem urgente
e cálida ao mesmo tempo, típicos dos descobrimentos da feminilidade.
Em “a ruptura”, Rupi nos convida
a mergulhar numa espécie de reconhecimento do fim. Os poemas são lúcidos e
oferecem um relato doloroso e cruel sobre o fim de uma relação intensa, envolta
não apenas em expectativas mas na comunhão de tantos valores. Sendo ainda mais
pessoal na análise, sinto que a autora fala aqui de um daqueles amores em que
todos ao nosso redor parecem aconselhar “não dá mais” ou “só amor não adianta”;
mas aos nossos ouvidos isso parece torpe, porque vive dentro de nós esse amor.
Por que, em algum modo, em algum grau, é o amor que nos foi possível alcançar,
reconhecer e desfrutar. Ao mesmo tempo, a autora sublinha o peso de sua decisão
diante da “meia dedicação” da pessoa amada, reiterando que estava cansada de se
contentar com pequenos pedaços do todo que ela merecia naquela relação. Esses
versos são construídos com ênfase na importância do amor próprio e da
autossuficiência: Rupi deixa algumas pistas e indícios de nossos primeiros
passos rumo ao fortalecimento e ao convite que considero impositivo e radical
nesse livro: o mergulho em si mesma.
É aqui que essa obra mudou a
minha vida – o que certamente só é possível graças ao percurso das três fases
anteriores – mas aqui eu senti o motivo pelo qual toda mulher, sem exceção,
merece conhecer as palavras de Rupi Kaur. Nessa parte, a mensagem da autora soa como um
clamor, um impositivo recheado de empatia, mas com os gritos da urgência:
mulheres, bastem-se. Passem um bom tempo consigo mesmas, busquem a reconexão
com o mais profundo de vocês. Tenham força para construir-se com a beleza que
verdadeiramente as pertence: antes do seu pai te diminuir diante dos seus
irmãos, antes dele reagir diferente à sua adolescência apenas por você ser
mulher; antes da balança te constranger pela primeira vez: quem você era? Antes
da primeira vez que você sentiu medo de andar na rua sozinha, qual era a cor da
sua alma? Antes de te perguntarem seus planos sobre casamento e filhos, quais
eram os seus sonhos? Na noite em que nenhuma notificação chega no seu celular,
o que verdadeiramente pode te dá prazer? O que te movia antes de perceber que você
foi educada para viver com medo? Seja do estupro, do engano amoroso, do galã
aproveitador, da dependência financeira, do casamento por comodismo: quem é
você sem esses medos?
A resposta está enterrada dentro
de nós mesmas. Cada uma de nós carrega todas essas respostas, o problema é que
elas estão soterradas por toneladas de concreto pesado, seco e estéril. Um
pedaço de nós morreu quando alguém mandou a gente “sentar como uma mocinha”,
outro pedaço de nós morreu quando ouvimos “mas você toma remédio, pra que essa
noia com camisinha?” e um outro pedacinho sucessivo morreu quando alguém se
sentiu no direito de perguntar “mas como assim não pretende ter filhos? Deve
ser porque não encontrou a pessoa certa!”. Esses pedaços morreram em mim, em
você, em tantas mulheres do mundo...e morreram na Rupi também. De modo que ela
nos presenteou com seus poemas de cura para dizer, basicamente o seguinte:
moça, você consegue fazer isso sozinha, sim.
Rupi é a proposta disruptiva,
subversiva e agressora do feminismo como um movimento que compreende as
opressões estruturais e parte do pressuposto de que se fomos educadas, amadas,
alimentadas, vestidas e orientadas para buscar a completude na exterioridade e
nos contentarmos em ser o Outro, apenas um caminho pode ser possível: o amor
por nós mesmas e por outras mulheres.
Precisamos cuidar de nossos
corações, nossos pensamentos, nossos afetos e posturas como jardins que carecem
de adubo e condições adequadas. Precisamos nos conhecer, nos acariciar, nos
respeitar e buscar as respostas de nossa própria identidade. Chegou a hora de
reinventar, transformar nosso ser em nosso lar. Somos mulheres, a força nos
encontra.
Sigamos juntas.
aaaaaaaaaaaaaa socorrooo eu simplesmente adorei suas palavras, já estava louca pra ler, agora então precisooo!
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