A crueldade do olhar observador masculino e nossa luta diária

Deparei-me com a expressão olhar observador masculino pela primeira vez na pesquisa que fiz como TCC, com viés feminista. Fiquei estarrecida com a expressão, porque tive aquela sensação de “uau, sinto isso todos os dias, mas nunca soube que tinha um nome e de repente esse nome soa perfeito”. No contexto da minha pesquisa, que abordava aspectos midiáticos da representação juvenil feminina, essa expressão dava conta de explicar exatamente como se forma o tal universo feminino que fala de maquiagens, moda e como conquistar um cara. Quem determinou que isso é universo feminino? Os homens, claro!

            O prestígio de que goza aos olhos dos homens, é dele que os recebe; eles se ajoelham diante do Outro, adoram a Deusa-Mãe. Mas, por poderosa que seja, é através de noções criadas pela consciência masculina que ela é apreendida. É com esse belíssimo tapa que Beauvoir nos ensina um bocado sobre como é viver sob o parâmetro de outro, ser observada, julgada e regulamentada por normas e pactos sociais que versam sobre nós mas nunca foram feitos por nós. O olhar observador masculino conjuga dois vetores bastante problemáticos e opressores: incute em nós mesmas a prerrogativa de ser vista por um homem e carregar o peso de depender da aprovação dele e, além disso, abarca todas as formas de representação sob o jugo desse mesmo olhar. Escritores, jornalistas, cineastas, fotógrafos, diretores de arte, deputados, senadores, advogados, policiais, médicos...todo um sistema que produz verdades, discursos e estabelece normas de acordo com o olhar masculino.


            Relembrando a citação de Beauvoir, até mesmo os prestígios que recebemos foram concedidos por eles, visto que são os constituintes da hegemonia. Por isso é tão difícil ocupar o espaço do empoderamento. Qual lugar a mulher poderia ter no cinema, por exemplo, se atua diante de câmeras manuseadas por homens, é dirigida por um homem e contracena tendo que atender às expectativas de amor romântico estabelecida numa sociedade patriarcal? Como pensar o pornô feminino se o mundo gira em torno do falo, do gozo que só tem valor quando libera um material visível e trata a mulher como objeto passivo a serviço do prazer?

            Observando esses aspectos, nos damos conta de que o olhar observador masculino é também o que constitui os padrões de beleza e comportamento que cotidianamente nos oprimem tanto, nas menores coisas. Quando manifestamos nosso desconforto com a não depilação, quando ainda enfrentamos preconceito ao afirmar que não sonhamos em ter filhos e quando recusamos a maquiagem “adequada à ocasião” para irmos de cara limpa ou com a make que nos der na telha, é contra padrões estabelecidos por homens que estamos nos levantando. E quando eu digo isso, por favor, não nos deixemos convencer pelos argumentos de “nem todo homem”, naquele estilo “o meu namorado me chupa até quando não estou depiladinha”. Não estou falando aqui de nenhuma situação ou relacionamento individual. Estou falando de opressão estrutural.

            Se a ordem social na qual estamos inseridas foi construída por homens e se foram esses homens que nos estabeleceram como “o Outro”, é a eles que pertence o olhar dominante. Como seres sociais e políticos, nós construímos nossa visão sobre nós mesmos a partir do que nos contam e do que vivenciamos. É mais ou menos aquela história: se os pais passam anos xingando e depreciando os filhos, eles crescem acreditando que são fracassados e incapazes. Compreendem? É isso que os homens fizeram conosco.

            Não se trata simplesmente de dar as costas, de negar qualquer convívio com os homens por mais exaustivo que isso seja (e sabemos que é mesmo, migas, eu as entendo). Porque já está dentro de nós! É olhar observador masculino. Quando eu, você, nossas irmãs, primas e mães nos olhamos no espelho, enxergamos ali milhares de defeitos que foram convencionados como defeitos porque homens o chamaram assim. É importante lembrar disso, o tempo todo.

            A possibilidade de desconstrução, diária e gradual, pauta-se muito no questionamento do nosso lugar, considerando a existência desse olhar. É lembrando disso que devemos nos fortalecer e nos encorajar a ocupar os espaços e ter a ousadia de produzir nossos próprios discursos, ter o senso crítico e a sororidade de debater entre as mulheres e podermos dizer: é assim que a gente vê, é assim que a gente sente. Por isso, somos nós que vamos escrever, falar, filmar e produzir sobre nós.

            Acreditamos na luta pelo nosso olhar. Por um olhar mais inclusivo e mais justo conosco. Sigamos juntas <3 

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