Amor próprio também dói

Quando era criança, nunca ouvi nenhuma mulher ao meu redor dizer que gostava do próprio corpo. Minha mãe reclamava constantemente que não tinha sido capaz de perder todo peso que ganhou durante a gravidez. Minhas tias estavam sempre de dieta, ou falando sobre dieta. Quando eu tinha 12 anos, uma delas decidiu fazer uma lipoaspiração pra modelar - de acordo com o que as pessoas ao redor consideravam bonito - um corpo que pra mim, uma criança, era perfeitamente saudável.

Eu não sabia ainda, mas mais tarde descobri que o monitoramento constante dos próprios corpos observado por mim não somente no ambiente familiar, mas também entre minhas amigas e 99% das mulheres com quem tinha contato era resultado da objetificação do corpo feminino, um mecanismo extremamente opressor e estruturalizado na nossa sociedade. Barbara Fredrickson e Tomi-Ann Roberts escreveram sobre isso em 1997 em um artigo que se propôs a explicar a Teoria da Objetificação.
"(...) meninas e mulheres são tipicamente ensinadas a internalizar a perspectiva de um observador como a visão primária de seus próprios corpos. Esta perspectiva sobre elas mesmas pode levar a monitoração constante do corpo, o que, por sua vez, aumenta significativamente as chances do surgimento do sentimento de vergonha e da ansiedade”.
Fredrickson e Roberts também constataram que mulheres tem seus corpos observados (dissecados, milimetricamente analisados) nos espaços públicos com muito mais frequência que os homens, por exemplo. Além disso, a grande maioria dos observadores, não contente em dissecar o corpo de uma mulher completamente estranha no meio da rua, ainda julga necessário tecer comentários de cunho sexual. Mas esses estudos são dos anos 80, nós já estamos muito além disso, certo? ERRADO. 100% e completamente errado.

O corpo feminino continua sendo analisado, avaliado, objetificado, sexualizado e escolhido dentre uma multidão de corpos naturalmente diferentes que jamais encaixariam em um único molde. A diferença é que agora nós tentamos lutar contra essa pressão externa porque, além de sermos bombardeadas a todo momento com imagens irreais do que é considerado um corpo ideal, também ouvimos a todo momento que precisamos ser mais gentis com nós mesmas, que não existe maneira errada de ter um corpo, que somos todas bonitas exatamente como somos.

E nadar contra a maré e amar o próprio corpo também causa estresse. Ansiedade. É um desafio que muitas vezes soa mais como um ato de coragem quando você percebe seu cérebro atacando o resto do seu corpo. Quando tudo ao redor tenta provar o contrário, aceitar que somos permanentemente imperfeitas e bonitas justamente por esse motivo é uma batalha diária que também cansa. Que também deixa marcas. E da qual não saímos vitoriosas todos os dias.

Isso tudo porque é fácil dizer que não há nada mais bonito que uma mulher confortável com sua própria imperfeição. É fácil dizer como deveríamos nos sentir e, logo depois, minar nossa percepção do corpo ideal com padrões de beleza inalcançáveis. E a frustração que vem do fato de não sermos capazes de aceitar nossos corpos como eles são mesmo sabendo que não há nada de errado em ser exatamente como somos é tão cruel quanto o sentimento de ser sempre muito alta-magra-gorda-baixa, mas nunca suficiente.

"Não deixe sua cabeça fazer bullying com seu corpo"

Quantas vezes você já se pegou pensando “odeio meu corpo, sou uma péssima feminista” porque metade do seu cérebro odeia seu corpo e a outra metade rejeita a objetificação? Quantas vezes você já se deparou em uma situação que colocava em risco sua saúde mental porque cedeu a pressão externa e a interna, ao mesmo tempo? Como daquela vez em que você deixou de sair com seus amigos, mas passou a noite em casa se culpando por sentir vergonha do próprio corpo. Quantas vezes você pensou “quero ser o tipo de pessoa que se sente bem no próprio corpo e não quer mudar nada sobre ele” e logo em seguida trocou o brownie que queria comer há semanas por quarenta minutos na esteira, mas no final das contas não se sentiu melhor por isso? Quantas vezes você se viu sem ter pra onde correr?

Amar e aceitar o próprio corpo é como começar uma revolução a cada manhã. E como qualquer revolução, essa também não se faz sem dor. Qualquer um dos caminhos vai nos receber com pedras e espinhos, mas só um deles vai ser capaz de nos fazer reconectar com quem realmente somos, com aquela parte de nós que, lá no fundo, sabe que nosso corpo é só um corpo, apesar de todas as mensagens culturais que tentam invalidar nossa certeza.

E se num dia a gente perde e no outro a gente ganha, onde e como vamos chegar é o que importa, mesmo que o saldo nem sempre seja positivo.

Por isso, sigamos.



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SOBRE A AUTORA

3 comments:

  1. Não consigo nem arranjar palavras pra comentar...
    Essa talvez seja a maior batalha interna pela qual a maior parte das feministas passa todos os dias: não se amar como você é x não (querer) aceitar as imposições sociais.
    Eu, particularmente, passo por isso sempre. Vivo pregando que a gente deve se amar mesmo, que todos os corpos são lindos, mas às vezes me pego procurando exercícios abdominais para queimar as gordurinhas que me incomodam tanto quando eu coloco uma roupa mais justinha (mesmo que eu diga a todos que elas não deveriam incomodar). Falo essas coisas, mas hoje quase deixei de ir com uma roupa bonita para o Natal da família porque estava com vergonha de mostrar as espinhas, e não seria nem a primeira vez que eu me obrigo a usar algo que não me agrada tanto só para não mostrar as malditas (e eu falo diariamente que é normal da idade, passa, ninguém tem que ter vergonha).
    Mas não é hipocrisia. É uma consequência da gente ter sido criada dentro dessas imposições e ter crescido ouvindo sobre os tais padrões de beleza. É o que acontece quando nós temos que lutar contra algo que nos vem tão naturalmente.
    O jeito é respirar fundo e seguir tentando. Uma hora, talvez não em breve, as coisas podem mudar dentro de nós. Até lá, sigamos.

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    1. Madu, é muito isso mesmo! Várias vezes me pego olhando pro meu próprio corpo no espelho e, no minuto que começo a gostar do que vejo, lembro que a grande maioria das pessoas não pensa o mesmo, o que me leva a questionar (olha o absurdo) a minha percepção do meu próprio corpo! Como se fosse errado eu achar bonito algo que a sociedade não entende como tal.

      E essa lavagem cerebral já me levou a ter problemas sérios de ordem alimentar lá na adolescência, mesmo tendo crescido sabendo que o padrão de beleza pregado na nossa sociedade é inalcançável. Aí a gente para e pensa: será que algum dia isso acaba? Porque é cansativo demais estar sempre entre essas duas máximas, sem or.

      E tomara que as coisas mudem logo dentro de nós, viu, porque ô trem que me consome esse. Obrigada pelo seu comentário, beijoca <3

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  2. Texto maravilhoso Giuliana! Só nós mulheres sabemos como os ideais inalcançáveis da sociedade nos aprisionam e nos machucam. E como sofremos quando nadamos contra a maré como os rótulos que ganhamos muitas vezes nos levam a cometer violências contra nós mesmas. Amar o próprio corpo em uma sociedade que prega uma (im)perfeição artificial é uma luta diária. Ainda bem que podemos seguir juntas nessa luta!

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