As bruxas seguem sendo queimadas


Típico, não é? Mulher traída é anônima, o macho é garanhão. Mulher que trai é puta, com nome e sobrenome, CPF e redes sociais bem definidas. Macho traído, é corno, é coitado, tadinho, mas esquecido. Ninguém fala do marido traído por mais que dois dias. Agora, a puta que traiu... Essa não é esquecida tão cedo. Tem que ser exposta, exposta ao máximo, no estilo Tiradentes, que é pra servir de exemplo pra todas as outras se manterem dóceis. Não trai, não, viu? Se não, olha o que vai acontecer contigo.

E acontece. Acontece o slut-shaming* que persegue a moça por onde ela for. Semana passada, um conhecido meu veio, todo afoito, me perguntar se eu já sabia da Fabíola. 

Ela trabalha no mesmo lugar que eu, aquela vagabunda. 

Quem diria, hein? 

A gente nunca conhece as pessoas.

O único acerto dele foi a última fala. Sem dúvidas, a gente nunca conhece as pessoas. A gente não sabe que a coleguinha do lado pode estar traindo o namorado, porque ficou cansada de tantos abusos e falta de carinho. A gente não sabe que o cara com quem a gente transou semana  passada hoje está sentado na mesa de bar falando da puta que comeu semana passada e seus fetiches estranhos. A gente não sabe que ontem houve uma menina que resolveu sair de casa por ser constantemente violentada pelo próprio pai; a gente só sabe que ela é uma rebelde sem causa. A gente não sabe que aquele nosso amigo tão legal, tão gentil, semana que vem vai na mesma festa que a gente e se aproveitar de nós enquanto bebemos a terceira dose de tequila, porque, poxa, ele sempre foi tão legal, tão gentil. 

Mas a vida é isso. É não saber o que vai acontecer quando a gente virar a esquina. Eu não conheço você, você não me conhece. Mas nada te dá o direito de expor qualquer parte da minha intimidade. Isso só diz de você, não de mim. 

Não sei quem é Fabíola. Não sei se ela tem filhos, se gosta de sushi, se fez uma doação de natal para as crianças carentes. Não sei e não me importo. Por que, então, deveria me importar com a infidelidade dela frente ao parceiro? Não o conheço, tampouco gostaria de saber, através de um vídeo infeliz, que ele é capaz de agredir uma mulher. Aliás, me choca que as pessoas estejam mais preocupadas com memes engraçados a respeito da traição do que com uma agressão contra a mulher gravada em vídeo e publicada na internet. Dá pra contar nos dedos quem é que sabe o nome do marido traído. Ou do amante. Ninguém sabe. Todas as piadas envolvem única e exclusivamente Fabíola. Quantas piadinhas infames envolvendo "fazer as unhas" você escutou essa semana?

O que podemos tirar disso tudo? O que importa, no final do dia, é o ego masculino. O espetáculo todo se trata de ego e docilidade, não de amor, confiança e traição. O vídeo se trata de um macho alfa tendo sua "propriedade" roubada por outro. Quem leva uns tapas é a Fabíola, sobre quem o marido detém posse — não que qualquer tipo de agressão devesse existir, a ninguém envolvido na história, se perguntar a mim. Quem é xingada é a Fabíola. Quem virou motivo de chacota nacional foi a Fabíola. Foi a babá da Gisele Bündchen. Foi a Isis Valverde. A culpa é sempre da mulher. A culpa é dela usando roupa curta, é dela quando não consegue sair de um casamento abusivo, é dela que saiu à noite sozinha. Vivemos em uma sociedade que tem vítimas identificadas e chamadas, de forma extremamente bizarra, de culpadas. Nesta sociedade, não existe espaço para identificar os erros masculinos. Nunca. Existe, sim, muito espaço para a criação de inúmeras desculpas para quando os homens erram — "O marido da Fabíola bateu nela, sim, mas quem não bateria em alguém logo após uma traição?" ou "Quem mandou sair com outro? Agora aguenta" é o que a gente ouve quando afirma que traição não é crime, mas agressão física é.


Imagem de Flóra Borsi.

De qualquer maneira, uma vez, no segundo ano, eu gravei um vídeo na sala de aula, em que todos os meus colegas apareciam gritando e rindo, no intervalo entre duas aulas. Coloquei no Facebook. Quase fui expulsa do colégio por isso. E, a partir dali, não importava mais o meu histórico de notas boas e postura exemplar. Ninguém mais queria saber sobre o prêmio de poesia que ganhei na quarta série do fundamental ou do primeiro lugar no vestibular de treinamento no primeiro ano do Ensino Médio. Ninguém mais iria me dar as mãos me parabenizando. Porque, dali em diante, eu seria a menina que quase fora expulsa. 

Fabíola, você não será a vagabunda que traiu o maridão, não. Não para mim, ao menos. Você seguirá sendo uma desconhecida — mas com uma diferença: agora, eu torço muito por você. Torço para que você fique bem e para que a memória seletiva dessa sociedade cada vez mais doente te esqueça em breve. Vai acontecer, Fabíola, não pense que não. Amanhã vai aparecer algum assunto diferente e ninguém mais vai falar sobre você. Amanhã, alguma famosa vai aparecer com uns "pneus" na cintura ou sem calcinha num jantar, e ela vai ser o alvo da vez — e eu torço por ela, torço por todas nós, mulheres, que corremos diariamente o risco de ser o novo assunto do momento caso pisemos um pouquinho fora da linha socialmente delineada. Sei que as cicatrizes permanecerão e, por isso, eu torço sinceramente para que você consiga tocar com a vida. Mas não se martirize, não. Não se afobe. Não deixe que a ideia de moralidade dos imorais regule a sua vida. 

A única régua que deve importar é a sua, de mais ninguém. 


* Slut-shaming: termo em inglês utilizado para denominar toda a humilhação que uma mulher sofre quando é socialmente entendida como vadia. "Slut" significa "vadia", enquanto "shaming" é uma palavra que remonta à vergonha, mais especificamente em causar vergonha em outrem. Causar vergonha em uma mulher por ela ser uma vadia. 

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SOBRE A AUTORA

4 comments:

  1. O que dizer desse texto? Amei cada colocação sua Rafaela e o mais importante, além de um texto super bem escrito, um texto que leva o leitor a reflexão. Meus parabéns!!! Amei o blog <3

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    1. Muito obrigada, Natália, fico muito feliz que o texto tenha provocado qualquer tipo de reflexão em você. E ficamos (eu, Mari e Giu) MUITO felizes com o fato de que você gostou do blog. Esperamos que continue conosco e, em breve, mande um texto seu, caso queira.

      Beijos, flor!

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  2. Recebi olhares estranhos ao dizer que, em hipótese alguma, nós, mulheres, deveríamos apoiar a agressão que a Fabíola sofreu.
    Quero imprimir esse texto e distribuir para algumas colegas de trabalho que assim disseram: "Bem feito" (pra Fabíola, no caso).

    Muito bom o seu texto, Rafaela. Muito bom mesmo!

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