Se o seu cabelo me ofende, vou tirá-lo daí: a autoridade masculina sobre nossos corpos

O Espírito Santo se confirma como líder em violência contra a mulher com requintes de crueldade que levam a uma reflexão mais profunda. No último sábado (02), uma adolescente de 12 anos teve a cabeça raspada pelo pai, um comerciante de 53 anos. A justificativa dada pelo homem é que a menina chegou em casa com o cabelo pintado com mechas de papel crepom verde.

Deixei essa informação para o final do parágrafo por considera-la reveladora também, especialmente no contexto de cobertura da mídia tradicional. Todos os veículos trouxeram como justificativa do crime a pintura do cabelo. Isso é doentio e reforça a legitimação do controle do homem sobre corpo e comportamento feminino. Portanto, vamos colocar os pingos nos i’s: o homem diz que raspou o cabelo da menina por causa da mecha verde, quando na verdade ele raspou o cabelo da menina por que julgou-se poderoso o suficiente pra isso. Por que ele acredita, como a maioria dos homens, que a mulher é uma fonte de satisfação masculina. 

Por força da minha profissão (sou jornalista e trabalho com monitoramento de mídias sociais), me deparei com muitos debates acerca desta notícia lamentável. Vários deles sustentavam a hipótese de que o pai foi correto na atitude, afinal “muitas meninas se perdem na vaidade se não forem corrigidas”. Não parece incrivelmente nojento que o desrespeito aos direitos humanos ainda seja considerado uma alternativa viável de educação? Vez ou outra tento contabilizar quantas tentativas de suicídio, automutilação, antidepressivos e afins ainda serão necessários antes que os pais entendam o peso da humilhação causada por eles na vida de uma filha. 

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Não bastasse o senso comum criando as meninas para ter medo dos homens, para atender prontamente às suas demandas e expectativas, o pai que tolhe a autonomia da filha potencializa de maneira assustadora essa opressão. É mais um vigilante do peso, dos bons modos e bons costumes, mais um inimigo estabelecido pela força social do ódio e do poder. O desespero cego por ter uma filha que atenda aos requisitos machistas com os quais já estamos acostumados supera qualquer idealização de amor paterno. E então, de onde menos se espera, te ensinam a culpa. Aquela mesma culpa que martela na cabeça da mulher toda vez que ela decide algo em nome de si mesma – deixando de lado as convenções sobre trabalhar meio expediente para priorizar a família, falar baixo, comer salada com suco de laranja sem açúcar e ter as unhas feitas. 

Sempre que tratamos de minorias é necessário fazer um esforço sincero para enxergar além. Não é “só” uma questão. A opressão se estabelece em camadas cruéis e lima a dignidade humana com uma profundidade assustadora. Ter o cabelo raspado à força, por mais horrível que isso já transpareça na frase, ainda diz muito pouco. Ter o cabelo raspado à força não é simplesmente sobre ficar careca. É sobre ter o espaço do próprio corpo violado, invadido. É sobre sofrer uma punição descabida por uma infração que não existiu. É ter uma brincadeira de criança transformada num crime contra a individualidade e a dignidade de uma menina. 

Para nossa pequena mana de 12 anos, trago uma péssima e uma ótima notícia. A péssima: eles acreditam piamente que estão certos. Acreditam que temos a obrigação de sermos magras, ternas, submissas, domináveis e escravas da estética. A boa: isso é resultado de narrativas perversas incutidas há séculos e reafirmadas em relações de poder cruéis. Ou seja, isso pode ser mudado se construirmos cenários diferentes. Não é fácil, mas certamente é muito mais justo que acomodar-se ao cenário de opressão diária e machismo constante.

E então? Vamos juntas <3

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